Por Olga Lúcia Castreghini de Freitas e Rosa Moura
A vida cotidiana nas grandes cidades é marcada por um ritmo e uma intensidade tal que poucas vezes nos damos conta da dimensão dos deslocamentos que fazemos. Quem já contabilizou os quilômetros que percorre por dia, por semana, por mês? Quem parou para refletir sobre a localização dos estabelecimentos que frequenta e das atividades que realiza? De onde vem a água que utiliza, para onde vão os resíduos que produz? De onde vêm as verduras que consome? Onde está localizado o centro comercial que frequenta, o hipermercado, a megaloja de materiais de construção? As atividades de lazer, o cinema? O roteiro de restaurantes “rurais” que frequenta nos finais de semana?
Pois bem, esse é um conjunto de indagações que pode contribuir para que o conhecimento dos lugares que percorremos, e que são essenciais para nossas vidas, sejam vistos a partir de sua dimensão metropolitana. Por certo, quem nos lê está a dar nomes aos lugares que percorre e, se vive numa metrópole, está automaticamente nomeando os vários municípios que abrigam as atividades descritas anteriormente.
Percorrer esses lugares é também conviver com dilemas que se situam no âmbito das políticas públicas necessárias para que eles sejam funcionais e atendam às demandas que temos sobre eles, em outras palavras, uma ciclovia não pode simplesmente terminar no limite de um município, se o trajeto necessário vai além desse limite. A margem de um rio não pode ser revitalizada do lado de um município e seguir abandonada no outro, quando o limite entre eles é o rio. Um novo conjunto habitacional não pode ser implantado por determinada prefeitura, se além dos limites do município que governa. As tarifas de ônibus na metrópole não podem ser unificadas a partir de prerrogativas de concessionárias municipais. Poderíamos seguir indefinidamente com exemplos, mas… o fundamental é que vai longe a época em que os problemas urbanos estavam circunscritos à escala municipal e que o prefeito, de modo soberano e independente de outros municípios, decidia e resolvia a maior parte deles.
Nesse contexto, está posto o cenário no qual emerge a questão da metropolização, pois as metrópoles não podem ser compreendidas senão por meio de uma visão mais abrangente e que considere a integração de um conjunto mais ou menos amplo de municípios que formam um território único, com problemas e demandas comuns e específicas, porém, com governos municipais diferentes. Aí reside uma das principais questões metropolitanas, qual seja, articular em torno de uma realidade supramunicipal interesses e decisões que têm no município sua unidade político-administrativa.
Para tentar resolver essas e outras questões, foi promulgada em 2015 a lei federal 13.089, denominada Estatuto da Metrópole, modificada em 2018 (Lei 13.683, de 19/06/2018). Nela, afirma-se que a realidade metropolitana deve ser observada em seu conjunto, em especial por meio das funções públicas de interesse comum (FPIC), definidas como a política pública ou ação nela contida, cuja implementação não se viabiliza a partir de um único município, o que demanda uma governança interfederativa para sua viabilização, ou seja, ações que perpassam os três níveis de governo: municipal, estadual e federal.
A realidade metropolitana em dados
Em 2018, de acordo com o estudo Regiões de Influência das Cidades (REGIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existiam no Brasil 15 metrópoles que, juntas, pelas estimativas populacionais do IBGE para 2021, concentram cerca de 75,8 milhões de habitantes (35,5% da população do Brasil) em 214 municípios. São elas: São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Belém, Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Porto Alegre, Recife, Salvador e Vitória.
O olhar sobre conjunto tão amplo e diverso exigiu a superação da visão municipal e a proposição de algo mais abrangente, que fosse capaz de capturar essa lógica de concentração populacional e integração funcional entre vários municípios que formam, de fato, uma única unidade urbana. Assim, foram propostos pelo IBGE os Arranjos Populacionais (AP), definidos como unidades territoriais compostas por mais de um município, com integração seja pela contiguidade das áreas urbanizadas seja pelos deslocamentos das pessoas para trabalho ou estudo. Entre eles se incluem essas 15 metrópoles, além de outros 274 APs, que somam 746 diferentes municípios.
Dois estatutos e uma nova realidade
Visando oferecer um marco legal e instrumentos práticos para o enfrentamento das questões derivadas da vida nas cidades e nas metrópoles, surgem dois Estatutos: o da Cidade (2001) e o da Metrópole (2015). O Estatuto da Cidade tem como propósito estabelecer normas que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental, fundamentadas na política urbana. Essa tem como objetivo ordenar as funções sociais da cidade e da propriedade urbana, tendo como principal instrumento o Plano Diretor Municipal (PDM). Já no Estatuto da Metrópole o propósito é estabelecer diretrizes para o planejamento, a gestão e a execução das funções públicas de interesse comum em regiões metropolitanas e em aglomerações urbanas. Para isso, estabelece como principal instrumento o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI) e a governança interfederativa.
Para a realidade dessas grandes unidades urbanas plurimunicipais, nas quais as principais demandas da população recaem sobre funções públicas de interesse comum a mais de uma unidade da Federação, claramente se evidencia o sentido de dois estatutos e os seus distintos alcances e finalidades. Adotar qualquer desses instrumentos, PDM ou PDUI, depende da finalidade, da escala e dos agentes. No caso do PDM, o município se coloca como autônomo para planejar, decidir e propor políticas públicas. No caso do PDUI, é imperativo que haja o entendimento de um conjunto de municípios, que nem sempre converge sobre temas que não são de solução isolada por apenas um deles, ou que podem causar prejuízo aos demais se decisões forem tomadas de maneira isolada.
Esse nos parece ser o cerne da questão metropolitana na atualidade: fazer convergir interesses municipais distintos em face de uma dinâmica metropolitana e de natureza supramunicipal. Na ausência de uma esfera de poder político regional, é a pactuação entre municípios, à luz do Estatuto da Metrópole, que poderia contribuir para avançar as políticas que, em última análise, viessem a promover melhoria na vida das pessoas.
Se o Estatuto da Cidade pode ser considerado um marco importante para um novo olhar sobre a cidade e sobre a Reforma Urbana, ao limitar-se à escala municipal ele deixa um grande flanco descoberto quando analisado à luz das demandas metropolitanas, que podem comprometer exatamente os mesmos princípios que o nortearam, inserindo uma complexidade devido às diferentes escalas dos problemas a serem enfrentados.
Como pensar em cidades sustentáveis na perspectiva metropolitana? Como exercer a gestão democrática metropolitana? Como prover equipamentos urbanos, transporte e serviços públicos à escala metropolitana? Como fazer o ordenamento e controle do uso do solo, de modo a superar os interesses específicos de um município, quando o que está em jogo é a escala metropolitana? Como garantir a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas pela população de baixa renda, quando ela está capilarizada pelos muitos municípios que compõem o território da metrópole?
Sabemos que tanto as lógicas individuais de moradia quanto as lógicas das empresas construtoras não consideram o limite do município como barreira, deslocando-se ao sabor do preço da terra urbana. É de conhecimento igualmente que, na maior parte das metrópoles brasileiras, a área do município que “encabeça”, ou que dá nome à metrópole, já está tomada por interesses e tem o solo muito mais valorizado. Mudou a cidade, consequentemente, devem também ser incorporados novos elementos capazes de permitir que se pense sobre esse novo universo territorial: a metrópole.
As assimetrias no território metropolitano resultam de que alguns municípios nem sempre contam com preparo e recursos técnicos, humanos e financeiros para atenderem a esse tipo de problema, e alguns, sequer para contemplar demandas vitais ao cotidiano de sua população, privando-a do Direito à Cidade, transformada em metrópole.
Para garantir o Direito à Cidade/Metrópole em um território desigual e que empobrece é necessário implementar políticas públicas adequadas a buscar um equilíbrio nas condições sociais e econômicas do conjunto de municípios, a dar suporte àqueles com menor arrecadação, a compensar os que desempenham funções limitantes a atividades geradoras de receita e renda do trabalho. E, fundamentalmente, a assegurar às populações vulneráveis condições dignas e saudáveis de vida.
O que falta para articular a gestão metropolitana
A gestão do espaço metropolitano, sob essas medidas, pode ser complexa, mas não impossível. Sua execução deve contemplar a extensão regional da mancha de ocupação na qual se assentam as atividades e as moradias e priorizar atenção à vulnerabilidade social e ambiental. Deve considerar a dissociação entre os lugares da moradia, daqueles do trabalho, consumo, acesso a serviços, e dirigir ações que garantam a mobilidade da população, que é o elemento que contorna essa dissociação e viabiliza a interação entre os municípios e no interior deles.
Deve, acima de tudo, estar atenta à natureza dos direitos, que nas metrópoles incidem sobre um espaço plurimunicipal perpassado por pessoas em movimento entre os municípios. Nesse espaço, as funções públicas já não bastam ao âmbito local, mas ao interesse comum a mais de um município, e para conseguirem eficácia devem estar pautadas em ações compartilhadas, cooperadas. E isso não é fácil, pois essa metrópole que se estende sobre um mosaico de municípios também é pressionada por uma pluralidade de interesses políticos e de segmentos sociais e econômicos. Para evitar que o mando de um município ou de um segmento privilegiado subordine a pluralidade do conjunto, e assim alcançar o equilíbrio na tomada de decisões e nos investimentos públicos, a gestão deve estar apoiada por fóruns democráticos de participação, seja de representantes das várias unidades político-administrativas seja dos muitos segmentos que interagem na produção do espaço metropolitano. É urgente resgatar os conselhos que foram revogados ou esvaziados nos últimos quatro anos, é preciso reconstruir formas de participação da sociedade nos processos de tomada de decisões, em direção, quiçá, a um conselho metropolitano.
Outro grande problema, particularmente no âmbito das pessoas comuns que vivem e se movem nesses espaços, é que não há clareza do que e de onde podem reivindicar como direito, uma vez que o exercício dos direitos é reconhecido apenas à escala do município. O que dizer de alguém que mora em um município, consome em outro, estuda em um terceiro, desenvolve atividades de lazer em um quarto, trabalha em um quinto, destina seus resíduos a um sexto, e consome água que provém de um sétimo? A qual irá recorrer sobre seus direitos?
O fato é que vivemos na metrópole, mas a solução para a maioria das necessidades continua sendo de âmbito municipal – o que parece ser algo inconciliável, se queremos, efetivamente, tratar daquilo que se denomina funções públicas de interesse comum, tão claramente expressas e abrigadas pelo Estatuto da Metrópole. Assim, nos parece fundamental que a dimensão metropolitana seja objeto de incorporação às pautas de luta pelo Direito à Cidade, tão protegidas pelo Estatuto da Cidade, pois do contrário em pouco avançaremos.
É preciso prosseguir em direção ao reconhecimento de uma cidadania metropolitana, que vá além do local onde as pessoas dormem e podem exercer seus direitos políticos, e passe a considerar o cidadão em movimento por um espaço mais amplo.
Pensar um projeto renovado de Reforma Urbana implica em suprir as lacunas abertas pela inexistência de políticas metropolitanas, pela incompatibilidade dos mecanismos e instrumentos existentes de gestão, sejam locais ou regionais, pelos embates entre o poder local do município polo e os demais municípios. Deve também superar as fragilidades das poucas entidades de coordenação metropolitana que ainda existem e de outras instâncias voltadas a esse espaço, que são de suma importância para o exercício da gestão coordenada e cooperada, mas não encontraram ainda um caminho de diálogo construtivo. Por fim, e fundamentalmente, é urgente romper o descaso dos anos recentes para com o Estatuto da Metrópole, fazendo valer seus princípios e a aplicação de seus dispositivos.
Olga Lúcia Castreghini de Freitas é professora titular aposentada do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do CNPq e do INCT Observatório das Metrópoles. Rosa Moura é doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora do INCT Observatório das Metrópoles.